5 de mar. de 2024

Oniria

 

"Eu sinto por você que já
foi livre e agora está preso
à esse triste mundo".
-Ghost in the Shell

...& se meus sonhos são melhores que a vida que vivo... & se os mundos sonhados são melhores que o mundo que vivo...
...& pesadelos do inconsciente emergem também... & um corte do mundo penetra na oniria... lugares apodrecidos com pessoas incompletas... sonho com coisas estranhas também... mas ainda assim as escolheria em troca da realidade...
...seria eu que sonho, seria eu que empesadelo, melhor, pior, estranho ao mundo?...
...atravesso a vigília & os sonhos & os pesadelos & as totais indiferenças... atravesso esse mau & esse bom... em lugares & vidas imaginados... melhores que a realidade pode dar...
...então só posso confirmar a pobreza da realidade... a incompletude do mundo... a idiotice do que criou isso, se criou... o fantasma envolto de carne que é capaz de alcançar as estrelas...
...só posso desejar, entre a existência real parca & meus sonhos bastos, viver nos sonhos... & excretar o real, pois é isso que sou para ele, carne excretada sem função...
...então... se a informação não se perde, & os sonhos são parte dela, o que sonhei, uma vida melhor... um mundo melhor... não se perderão, & poderei acessá-los... & jogar os pesadelos, como excremento, para reciclar...
...& se meus sonhos são melhores que a vida que vivo... & se os mundos sonhados são melhores que o mundo que morro... sonho & vivo... pois quem tem pouco faz dos restos tudo...



3 de mar. de 2024

Domingo

 

Não me lembro mais o que foi perdido
   pela estrada dos anos & décadas
      que modificou os dias de domingo

Faíscas de memórias relampejam
   trazendo cores, sons, odores
      uma paisagem de fundo
         que não seguro mais no pensamento

A imagem remete à campos amplos
   liberdade de céu azul, vozes em alegria
      & um cheiro que só se sente sob o sol

Acho que o que se perdeu
   é aquilo que não se pode recuperar
      o formato das nuvens que não há
         de se repetir nunca mais

Sobre o chão onde vamos nos distanciando
   dos dias que encantados
      que não voltam atrás

Onde a inocência
   foi corrompida como nuvens
      pelos ventos das idades
         & suas mudanças temporais
     


 

1 de mar. de 2024

Trans-Ações/Trans-Inações

 

Esperando coisas vazias de gente vazia para quem ofereço nada...
   (no nível da fútil troca que desqualifica tudo
   que aprendemos egoisticamente ou   
   benevolentemente como transação justa)
Desesperando sem exasperar, seguimos inquietos de uma forma quieta por entre a atribulação...
   (na turbulência inculta exalada das pessoas
   para os lugares & dos lugares para as
   relações, dessignificando tudo)
Apenas sendo o nada inato que todos somos, em uma folga constante daquilo que fingimos ser...
   (um esforço hercúleo na preguiça do amor,
   da paixão, dos pêsames, da fome & da
   melancolia das vísceras)
Mergulho recorrente na insatisfação que parece nos nutrir de permanência...
   (ficar quieto na situação incomôda onde
   nem a muita dor nem o pouco prazer faz-
   nos mover)
Enquanto vamos afundando, nos esquecendo de tudo que devíamos ter aprendido...
   (repetindo hábitos, recorrendo à erros
   repassados, insistindo na desolação
   cotidiana da falta de felicidade)
Já não tem nada a nos oferecer, agora trocam conosco promessas que não podem cumprir sobre aquilo que não conseguimos alcançar...
   (vendem-nos caro então a própria
   frustração que cultivamos)



29 de fev. de 2024

Vinte & Nove de Fevereiro

 

Uma perspectiva relativa pauta tudo,
   tudo que fazemos, tudo que vemos
      percebemos, julgamos, reagimos...
Um fator nos encaminha, coaduna
   rege, perfila, define & indefine...
Esse fator é o
                              T E M P O

& hoje, no dia fora do dias,
   corrente de inacontecimentos
      reverbera um pequeno escape
         de nossa prisão do conhecimento inato
            que nos aprisiona...

Assim, escapulindo fantasiosamente do tempo
   através de uma data ilusória
      na engrenagem do calendário,
Vamos sorvendo um dia a mais
   que entranha na carne
      sem fazer diferença nenhuma
         & mudando tudo!



27 de fev. de 2024

1% do Céu

 

Hoje,
   na madrugada,
      o reflexo da lua na janela de um prédio
         entrou no meu quarto,
Pela mesma brecha na cortina
   onde eu via uma estrela
      & uma luz alada não identificada passou...
Todos silenciosos
   as brechas no isolamento,
      a lua, a estrela, a luz,
         iniciaram o meu dia
            & os meus olhos à coisas
               que há tempos não via...
Pela brecha da cortina,
   a abertura da janela,
      entre as frestas dos prédios 
         nos olhos, 1% do céu...
Uma semente de paraíso
   na combinação perfeita & rara
      no escuro silencioso da madrugada.



24 de fev. de 2024

Narrativas Negativas (in)Ativas

 

Existe qualquer coisa mais real que nós mesmos?
Sentimentos profusos inconfundíveis & incompreensíveis...
Existe além da pressão dos eventos que passamos algo que mais importa?
Um só fato relevante em toda essa feira de banalidade superficial do mundo imundo...
Existe, rondando por aí, um caso & um ocaso que supere nossa própria circunstância?
Nesse profundo mergulho rumo à morte, delirante fuga do nada importante...
Sendo nós a única coisa real, nós, imutáveis & estáticos dentro do fluxo do tempo, pararaios das desgraças & filtros dos milagres, aguardando ou expostos, recolhidos ou explícitos, embriagados ou amordaçados, estamos simplesmente aí... & a verdadeira & leal pulsão seria destruir... mesmo que a maioria queira servir, para uma comoção idiota, perto da iluminação, na patética representação de ser bom, legal...
Mas nós, nós, isolados, calados, isolados, refugiados... exilados... simplesmente somos & não somos... nada do que outros poderiam que quisesse que um dia poderíamos... ser! 🖕🏻



23 de fev. de 2024

Pegados

 

A gente desconhece
   a razão da ordem inversa
A complexa simplicidade
   de não se estar só
Uma trégua contra toda saudade ampla
   um refúgio contra a solidão em comum
Se não fossemos tão grandes
   em nossa pequenisse
Acalmariamos a loucura do solipsismo
   & achariamos a contentação na cumplicidade
É preciso o poder da calma
   antes de tudo se dispersar
& medir a inutilidade de cada um
   para com o outro
Através da utilidade de nos amparar
   quando menos pensamos & mais provável
Chuva molhando o asfalto
   lâmpada acesa em quarto vazio
Presença comportando ausência
   ausência em fuga da simples presença
A gente se reconhece enfim
   quando estamos felizes de estar com alguém
& apesar de haver tantos
   & tantos em solidão & outros não
Haverá um certo entre os errados
   haverá um certo acerto pra cada um
Nunca apegados pela graça de estar
   pegados no vazio entre a carne & o amor


 

22 de fev. de 2024

Passantes

 

Cegos para nós mesmos, só sentimo-nos na particularidade das dores... olhar pra dentro, da pele até o átimo de consciência, é quase... imponderável.
   Vemos, escandalizados, ou eufóricos, o mundo mudando em volta... edifícios demolidos, novas construções... o fim da vizinhança... a mudança no tempo... a novidade que vem & vai... mas não percebemos como nós mesmos vamos passando.
   Parece que não estamos onde estamos, que não somos também arrastados pela corrente do tempo, parece que nos recusamos tolamente pertencer à mesma matéria de que tudo é feito... essa coisa moldável, mistura de carne & terra, assim como o mundo é de crime & cimento, vamos recuando no tempo rumo ao desaparecimento.



21 de fev. de 2024

Jazida

 

Deslizando
   por entre as pedras ásperas da vida
A mente & o corpo esfolados
   tendem a procurar a maciez da lida
Minerar, garimpar, lapidar
   o lugar isolado no mundo
      onde podemos prosperar... na sina...

O desejo & a desistência
   regrediram ao mineral
Se instalaram na terra
   como cova de transcendência
& dentro do túmulo do passado
   agitam a alma para um novo modo
      de ser... & de estar...

As saudades agora são pedras imprecisas
   deixadas deitadas pela estrada
Os amores repousam frios
   por entre o pó & o nó espanado na poeira
& os desejos habitam agora
   o jazigo deixado intocado
      para que ainda seja jazida de alegrias...



12 de fev. de 2024

Depois de Domingo

 

Em dias como esse que me pergunto
   se realmente aconteceu um dia lá fora...
Não vi a rua
   não vi o céu
Só impressões dispersas
   de que tudo continuava a existir
      ruim como sempre foi...
Pelas ondas digitais
   vidas falaram comigo
Pela tela da TV
   o mundo colorido bruxuleou
Pelas frestas dos sentido
   o preto & branco continuou...



9 de fev. de 2024

(De)Composição

 

Eu sou o cara que fala de amor
   & ama
Na multidão, na roda de amigos
   nas mesas dos bares, redes sociais
Por entre o barulho da cidade
   & o silêncio das noites
Eu sou o cara que falava de amor
   & amou
Mas como tudo atrai seu acerto de contas
   assim como a luz atrai mariposas
& dos cadáveres brotam vermes
   & o cheiro ruim da morte
Disposto sem máscara
   ao julgamento dos estragados
Eu fui o cara que falava de amor
   & se calou



7 de fev. de 2024

Dias de Chuva

 

Vai
A estrada está molhada
Cai
   nela água do céu
Não são lágrimas
   como as suas
São até doces
   antes dela mesmo beber
      a poluição que sobe
         & o ácido que paira, do mundo...

...chuva de cima, chuva de baixo...

Vai
Toma cautela com as curvas
Sai
   do rumo das trombas de chuva
Está tudo disposto
   liso & sincero
É só chuva no asfalto
   & o cheiro de terra no ar...

...chuva que cai, chuva que repousa...