17 de jun. de 2011

Selena Sombreada

No Jardim das Janelas
   da tarde fria que esvai mais quieta
Esperei eu Selena nua
   vir se cobrir de vestígios de nada
Vestir sombras
    sobrevestir na envergadura do horizonte
       horrorizado que estava
           de fuligens de vulcões  & dinossauros cremados.

E na tarde desse semibréu atmosférico
   das conjunções planetárias
      & tempos modernos
Uma estrela reza nas minhas costas
Um anjo cai sob minha cabeça
Uma gata vigia a janela
   & os satélites dos olhos orbitam
      agitados pedindo um luar.

Selena vem já medrada
   & a vesânia me consome
Hoje seu lado escuro está mais escuro ainda
E sua nudez perene
   entregue opaca como um rubi de lama
No céu sujo que anuncia em si
   o portal do inverno geral que assalta urgente
      todos os olhares e também corações perdidos.


 












 Kalkii espera a lua

13 de jun. de 2011

O Teatro da Cura Cruel (por Ana Teixeira)



“Não quero que ninguém
ignore meus gritos de dor, e
quero que eles sejam ouvidos”,
“eu represento minha vida...”

Antonin Artaud


   Antonin Artaud nasceu na França em 1896. Foi poeta, pintor, escritor, ator e dramaturgo. Seu percurso marcou de modo decisivo áreas tão abrangentes como a literatura, o teatro, a pintura, a filosofia, a medicina e a antropologia.

   “Je joue ma viel”(1), declarava Antonin Artaud, e não era uma metáfora. Sua vida é tão ligada à sua obra que poderíamos quase dizer que ele escreveu com a própria vida.

   O sofrimento físico e mental de que padece e que exprime em sua correspondência com Jacques Rivière em 1923, o leva a fazer uso do ópio sob prescrição médica desde os quinze anos de idade. A droga o alivia, mas o obriga a terríveis tratamentos de desintoxicação. Sua vida foi uma eterna procura da cura de sua “pavorosa doença do espírito”. Poesia, escritura, pintura, desenho, viagens e esoterismo são formas diversas de uma mesma busca. Nesta busca, o teatro e, em particular, a profissão de ator, ocupa um espaço privilegiado. A cena é o lugar eleito para a cura da dor e da impotência intelectual e criativa decorrente dela; o lugar para recuperar uma nova identidade, não-dividida, mediante uma “síntese superior do físico e do espírito”. Ser ator é a primeira vocação de Artaud; o teatro se apresenta do início ao fim como espaço terapêutico, a cena é “a possibilidade de nascer outro”, de regenerar o ser.

   Esta consciência o leva a coincidir sempre sua busca pessoal com a busca de um teatro orgânico, eficaz, necessário, que possibilite ao homem se reencontrar, ou mesmo renascer. Este é o sentido da relação fortíssima, já apontado nos anos trinta no “Teatro e seu Duplo”, entre teatro e vida.

   Um teatro eficaz é aquele capaz de refazer a vida, o que não seria possível sem refazer profundamente a cultura no Ocidente. Toda a obra de Artaud foi guiada pelo desejo incessante de reencontrar um ponto de utilização mágica das coisas, recusando uma consciência estética fundada em simulacros, aparências face à realidade empírica das coisas. Ele coloca a questão da linguagem e da manipulação de signos em termos de forças mágicas e da relação mantida, através deles, com o cosmos e com o divino. Para Artaud, o Ocidente europeu é doente porque separado, pois perdeu sua ligação com o divino, com a consciência cósmica.





As Cartas de Rodez

   Em 1937, Artaud recebe um bastão mágico proveniente de um feiticeiro da Savóia, que ele acreditava ser o bastão de São Patrick, patrono dos Irlandeses. É para a Irlanda que ele parte, afim de devolvê-lo ao seu lugar de origem e de encontrar traços da cultura celta. Vivendo em condições precárias, em um país onde ele mal domina o idioma, Artaud vive pregando nas ruas com seu bastão. Acusado de ser um agitador e de vagabundagem, é preso e enviado, num barco, pela polícia de volta para a França. Um incidente ocorrido durante a viagem fez com que ele fosse, a partir de 1937, internado como louco em estabelecimentos psiquiátricos.

   Ao sofrimento do afastamento, às brutalidades de uma vida comunitária
imposta, aos odores da promiscuidade, e às privações da vida em um manicômio, adicionou-se com a Ocupação alemã em maio de 1940, as carências alimentares.

   Assim, em Ville-Évrard, além de sua dignidade e de sua liberdade, Artaud começou a ser privado de seu corpo. Subnutrido, ele se torna um esqueleto, uma sombra dolorosa que tenta manter a vida. Suas cartas, as poucas que se conhece, são longas reivindicações de comida.

"E se ainda estou vivo, Euphrasie, é por ter uma constituição anormalmente
resistente e também por um perpétuo milagre de Deus
mas, na realidade, sou só um cadáver vivo e que se vê
sobreviver e vivo aqui com angústias de morte."
(Carta do 23 de março 1942 à Mme. Artaud)

   Artaud ficará esquecido até 1943, quando seus amigos se moverão para salvá-lo. A pedido do poeta Robert Desnos, ele é transferido a Rodez pelo Dr. Ferdière, médico-responsável deste manicômio. Ligado ao movimento surrealista, o médico conhecia Artaud e era um admirador de seu trabalho. Desde sua chegada em Rodez, Artaud inicia uma intensa correspondência com seus amigos, mas também com o médico. Por essas cartas percebemos uma relação ambígua entre os dois: livrando Artaud dos manicômios onde esteve internado em condições extremamente precárias e fazendo com que fosse transferido a Rodez, o médico salva sua vida e, como reconhece o gênio do poeta, o incentiva a retomar sua atividade literária. Ao mesmo tempo, julgando a poesia de seu paciente muito delirante, ele o submetia a
violentos tratamentos de eletrochoque, prejudicando seu corpo e sua memória.

   Apesar da relação de amizade que se estabeleceu entre os dois, o Dr. Ferdière mantinha Artaud privado de sua liberdade e de sua dignidade, obrigando um homem que possuía todos os meios de sua maturidade para trabalhar e se manter, a viver sob a tutela de médicos em um regime de promiscuidade, com pacientes que nada tinham em comum com ele. As cartas são para Artaud um recurso para não perder sua lucidez e testemunhos de um homem em terrível estado de sofrimento e de solidão.

Vejo na sua proposta de me trazer aqui e de cuidar diretamente de mim o desejo de fazer justiça a um homem internado sem razão. Mas tem uma coisa que é inadmissível na minha situação aqui. Já faz quinze dias que pedi ao Dr. Latrimolière que me deixasse tomar banho todos os dias para me manter limpo. Pedi-lhe também que evitasse me incluir no banho coletivo pois a aproximação de todos os corpos nus e o odor dos gazes mefíticos que alguns doentes exalam ofendem minha castidade, e o que me responderam é que não havia água quente. Pedi ainda que me fizessem a barba pelo menos a cada dois dias e o barbeiro me disse que não tinha tempo. E faz dois meses que o senhor prometeu me mandar uma escova de dentes e até agora não me mandou. O senhor bem pode notar que estou sendo maltratado, e poderá notar que também me trata muito mal, e no fim é a mim que o senhor censura dizendo que não me cuido bem. Suas reprovações me feriram o coração, são uma afronta que preferia não ter ouvido da boca de um amigo. Sempre me preocupei com a higiene de meu corpo e apesar de meu enorme cansaço vou procurar todos os instrumentos de que preciso além de uma escova de dentes. Mas será que o senhor não notou que quase não tenho mais dentes, e que dos trinta e três que tinha só sobraram oito. Parece que o senhor já se esqueceu de como os perdi. É cruel, Dr. Ferdière, censurar um homem ferido e acidentado por maus tratos de não escovar os dentes ao saber que este mesmo homem perdeu os dentes por desgraça. (Montagem de cartas escritas ao Dr. Ferdière em 12 de fevereiro e 18 de maio de 1943.)

   Artaud chega em Rodez em janeiro de 1943. Pouco a pouco ele se refaz, recupera seu peso, seu corpo e também sua mente. Em junho estimam que já está restabelecido o bastante para resistir à brutalidade da sismoterapia, e ele é submetido a uma série de eletrochoques.

   O eletrochoque, tal como era praticado nessa época, é uma extraordinária barbárie. De uma crise de epilepsia provocada, o doente acorda abobalhado após um coma que dura longos minutos. O eletrochoque abala o pensamento, tornando-o confuso, faz o paciente mergulhar “neste estertor por onde se deixa a vida” e de onde ele volta com a lembrança atroz de ter sido esvaziado de seu eu.

   Já na segunda sessão, o corpo de Antonin Artaud não suporta a violência das convulsões e ele sai com fortes dores na coluna vertebral. Assim mesmo, os médicos persistem. Depois do terceiro eletrochoque, elas se tornam insuportáveis, a nona vértebra dorsal é fraturada e o médico deve abandonar este tratamento que causou tantas desordens: será necessário dois meses de leito e de cuidados apropriados antes do corpo poder ficar de pé. No final de outubro do mesmo ano, seu sistema ósseo é considerado
bastante sólido para recomeçar o tratamento. Ele é submetido ainda 12 vezes ao eletrochoque e no ano seguinte três outras séries de 12 são impostas. A cada vez ele se revolta, protesta, suplica e fala, com uma lucidez extraordinária, das razões que ele tem para condenar esta prática:

O eletrochoque me desespera, tira minha memória
entorpece meu pensamento e meu coração, transforma me
num ausente que se percebe ausente e se vê durante
semanas perdido em busca de seu ser como um morto ao
lado de um vivo. Na última série eu fiquei durante todo o
mês de agosto e setembro absolutamente impossibilitado
de trabalhar, de pensar e de me sentir ser. Peço que me
poupe de uma nova dor, isto me fará repousar, Dr.
Ferdière, e preciso muito de um repouso”
(Montagem de cartas escritas ao Dr. Latrimolière -6 janeiro de 1945-
e ao Dr. Ferdière -24 de outubro de 1943)


   No entanto a medicina, esta medicina “que mente a cada vez que ela apresenta um doente curado pelas introspecções elétricas de seus métodos”, continua a pretender curá-lo atravessando seu corpo com descargas elétricas, jogando seu ser no abismo em 51 comas durante os três anos passados em Rodez. Mas graças a que recursos este homem cujo corpo e mente sofreu tal violência conseguiu não se aniquilar?

O Teatro da Cura Cruel

   Em Rodez, quando ele sente a possibilidade de voltar para a vida exterior, a idéia do teatro reaparece. A produção literária de Artaud neste período é marcada pela forma epistolar, reveladora de seu desejo de “dramatizar a escrita”, de escrever sempre para alguém, para um leitor-espectador.

   Além de recomeçar a escrever e desenhar, ele se dedica a uma intensa e quotidiana prática vocal, exercitando sua respiração e seu corpo, praticando cantos e giros conjuratórios que eram também um meio para lutar contra os feitiços maléficos que o cercavam.

   Este trabalho, ele o repetiu quotidianamente depois de seu retorno a Paris. A energia que ele produzia, as forças que emanavam de seu corpo enfraquecido, as incríveis variações de altura que obtinha de sua voz, a intensidade e a duração dos gritos aconteciam como um fenômeno de operação mágica. Este era o Teatro da Cura Cruel, um teatro que não precisa de sala, onde o lugar é o corpo do homem proferindo sua vida. Esta prática foi decisiva para a volta de Antonin Artaud à vida e à poesia.

   Mas estes cantos e giros eram censurados pelo médico-chefe do hospital psiquiátrico. Era desconhecer grosseiramente a teoria do grito e do sopro, do corpo do homem como lugar primordial do ato teatral que ele já tinha formulado nos anos trinta com o atletismo afetivo e o Théâtre de Séraphin.

   Ele faz questão de deixar claro que esta prática é uma lúcida determinação, ligada ao ato de criação, e que não tem nada a ver com uma demonstração de inconsciência. Ele sempre protestava quando seus cantos escandidos eram usados como provas de sua perturbação mental. Eram cantos que acompanham um desenho ou um poema e que ele transpunha como suporte de um signo escrito ou desenhado.

“O senhor esquece que eu também fui encenador e que
todas as peças que fiz eram baseadas numa utilização
particular da salmodia e da encantação. Isto é doença
mental?”


   Artaud resistiu em Rodez pela escrita e pelo trabalho que ele impunha a seu corpo e à sua voz, trabalho este que é uma outra forma de escritura. O homem privado de sua liberdade mais elementar foi também privado de seu próprio corpo. Este mesmo corpo cujo funcionamento anárquico o fez sofrer “os estados de dor errante e de angústia”. Mas o terrível estado de reclusão psiquiátrica constituiu para Artaud uma extraordinária experiência cognitiva. Quando voltou a Paris em 1946, depois de passados 9 anos em manicômios, ele se denomina Artaud, o Mômo, como Artaud, o Louco, o Bufão. Depois de ter sido tanto tempo considerado louco, agora ele sentia prazer em se fazer de louco para dizer certas verdades. Uma destas verdades essenciais diz respeito ao nosso corpo. O corpo atual, desconectado da origem, é o resultado de uma manipulação perpétua e perversa em conseqüência da qual “sua anatomia, que deixou de corresponder à sua natureza”, deve ser refeita. No final de sua vida e de seu percurso artístico, Artaud concebe o Teatro da Crueldade como um grandioso projeto ético-político de insurreição física: trata-se de transformar a cena para que o homem e não somente o ator possa refazer sua anatomia, possa reconstruir um “corpo sem órgãos”. Este refazer baseia-se na idéia da decomposição e recomposição do corpo e visa essencialmente a desarticulação dos automatismos que condicionam e bloqueiam o indivíduo e o impedem de agir realmente, de modo consciente e voluntário, em cena ou na vida. Depois de Rodez, o Teatro da Crueldade é o teatro de um violento refazer do corpo.


(1) “Eu represento minha vida”. – O verbo jouer em francês tem um sentido muito amplo. Significa atuar, representar, interpretar, mas também jogar, brincar, arriscar. No teatro, o ator é aquele que ‘joue’, a tradução freqüentemente encontrada em português é
interpreta, mas, no caso de Artaud, o correto seria uma palavra que reunisse o sentido de
atuar e arriscar.

*Ana Teixeira é encenadora e professora de interpretação teatral, diretora do espetáculo Cartas de Rodez (1998), com texto de Antonin Artaud, que recebeu o prêmio Shell de melhor ator e melhor direção e o prêmio Mambembe de melhor espetáculo.




-Transmissão de Antonin Artaud direto do limbo:

“...

   Querem saber o que é mesmo a crueldade? É assim?

   Não... Eu não sei!

   A Crueldade é extirpar pelo sangue e até o fim Deus!
   Deus o acaso bestial da animalidade inconsciente do homem em todo lugar que o encontre.

   E o que faz Sr. Artaud?

   O homem quando não controlado é um animal erótico!

   Ele tem um estremecimento, um estremecimento inspirado, uma espécie de pulsação produtora de monstros sem fim que são as formas que os antigos povos da terra atribuíam universalmente à Deus. Isso constituía o que chamamos de espírito!

...”

-Poema de Artaud:
 
 
"Quem sou eu?
De onde venho?
Sou Antonin Artaud
e basta que eu o diga
Como só eu o sei dizer
e imediatamente
hão de ver meu corpo
atual,
voar em pedaços
e se juntar
sob dez mil aspectos
diversos.
Um novo corpo
no qual nunca mais
poderão esquecer.

Eu, Antonin Artaud, sou meu filho,
meu pai,
minha mãe,
e eu mesmo.
Eu represento Antonin Artaud!
Estou sempre morto.

Mas um vivo morto,
Um morto vivo.
Sou um morto
Sempre vivo.
A tragédia em cena já não me basta.
Quero transportá-la para minha vida.

Eu represento totalmente a minha vida.

Onde as pessoas procuram criar obras
de arte, eu pretendo mostrar o meu
espírito.
Não concebo uma obra de arte
dissociada da vida.

Eu, o senhor Antonin Artaud,
nascido em Marseille
no dia 4 de setembro de 1896,
eu sou Satã e eu sou Deus,
e pouco me importa a Virgem Maria.
 
 
 
 
 
 

1 de jun. de 2011

Texturas do Abismo: "Rasgar o véu da realidade"


    Rasgar o véu da realidade...
   Eis a proposta que me apareceu hoje, uma intuição quando eu andava insone pelas ruas, observando ao mundo, escutando seus sons, apreciando as beldades, vendo o movimento de tudo, inclusive o meu pensamento.
   Então esta tarefa surgiu, como um exercício para recobrar a sanidade que se esvai de mim.
   Fui andando, descendo a avenida de carro, e constando toda a plasticidade da realidade que se desvencilha diante dos meus olhos, como aquilo tudo me pareceu tão irreal e fraco naqueles momentos em que eu encarava-a de frente.
   E observei o mundo, o céu, as nuvens, os muros, as pessoas, todas aquelas pessoas também, como eu, mentes pensantes onde o fluxo de pensamento também não cessava.
   E se desvencilhou para mim o tempo que sustém todas as coisas em suas costas largas, como o aparato que carrega em si o fio condutor da realidade, fazendo com a “vida” tenha um sentido comum. E se só existisse aquele momento em diante? Se tudo iniciasse-se no momento em que tomássemos uma certa consciência da realidade e por ali ela seguisse então, trazendo consigo uma memória de fundo que possibilitasse a sanidade cronológica como apego maior para se “ir seguindo”.
   Fui raciocinando assim, tentando achar uma falha estrutural permitisse me apegar para dali escapar do fluxo continuo que é o real, afinal tudo que temos é a realidade e a capacidade de inquiri-la, cogitar que ela seja realmente uma grande criação de nosso aparato cognitivo, de cada um de nós, se misturando o máximo possível, criando a cadeia das existências.
   Se tudo está realmente em minha cabeça, as cores, os sons, os movimentos, as sensações, então aquelas outras coisas não passam de impulsos relativos e muito pouco alheios ao que sou.  Se for eu que crio a realidade, eu também devo ter alguma faculdade que possa “rasgar o seu véu”!
   Uma “faculdade”, um argumento, um ponto inegável, um disparate cognitivo qualquer que faça com que tudo se dissolva e mostre primeiro a realidade como falha, e dali encontrar a ponte de escape para esta realidade, para o controle final do que venha a ser a existência aqui e assim...
   Vou por essa senda e espero mais uma vez das casualidades a resposta para se chegar à resposta que procuro. Espero ir encontrando então as migalhas pelo bosque do real que me indique o próximo passo para achar tal resposta. Seguindo o fio dentro do labirinto.
    Mas percebo que tal fio poderia mais uma vez ser justamente esse véu de ilusão, disponibilizado pelo deus enganador, por Maya, a Ilusão! Como poderei confiara nisso? Tenho fé na capacidade que o “Desvencilhador das Ilusões” esteja infiltrado, telegrafando uma mensagem subliminar por entre as arquiteturas de ilusões do real, mandando as migalhas no chão da floresta.
   Então seria “fé” um fator crucial nessa “iluminação”? Sim, fé que tudo seja ilusão, fé que haja algo, alguém que zele por nossa liberação deste labirinto de sofrimentos! Uma fé que não é cega, pois cona com um fundo intelectual que almeja desfazer também a intelectualidade, pois essa muito se pauta no fluxo do “continuum” no qual estou imerso.
   Essa seria uma fé mística então. Uma crença que confirme que o que pressinto sobre a realidade seja mesmo verdade, que a parede descascada à minha frente tenha existência somente dentro do continuum dentro de minha cabeça e que com o argumento certo eu possa transcendê-la, eu possa comprovar sua ilusoriedade.
   Uma ciência física já atesta isso. Mas para além dessa, seria necessária para mim uma práxis mais cotidiana. Mas... Por quê?
   Devo me ater nisso! Por quê? Para comprovar de forma irrefutável e a fé se tornar ciência também! Devo me ater a isso? O isso seria algo vindo do continuum de ilusões? Acredito que não! E me respaldo para atestar isso pelos ensinamentos do budismo, da ioga, e dessas crenças que se tornaram ciência também, pois o argumento para isso é a familiarização, para quando da falência do aparato cognitivo poder se transcender com mais propriedade o véu da realidade e me desvincular totalmente com o mundo.
   Então só com a morte final seria possível essa liberação factual? Parece-me que sim! Enquanto isso temos só poesias, religião, luta, mas é necessário tornar essa luta e esse esforço corretos, para um menor gasto de energias, para um melhor treinamento que nos deixe prontos para quando do desencarnamento, estarmos preparados para nós mesmos nos liberarmos dos véus da realidade.
   Por enquanto vale então esse esforço de procurar, aprender, exercitar a mente na matéria de dissolver a matéria, para que nada nos seja estranho, para que o gatilho esteja armado quando da oportunidade de atirar.
   Se todo o véu das ilusões é uma artimanha criada para nos aprisionar, o ponto falho nesse sistema é a própria morte, por isso tal questão é fruto de tantas ilusões e medos para o ser humano. Não tendo como criar um continuum consistente dentro da natureza das coisas, como a infinitude da vida, a ilusão só pode usar de subterfúgios para divertir a mente para que não se acostume com a idéia de que tudo morre mesmo.
   Sendo a falha na realidade que ela não subsiste para sempre enquanto nossa existência, então o mais certo é nos divertirmos no mundo, mas nunca se esquecendo de nos informar do saber sobre a transitoriedade, pois usaremos dela para abandonar todas as vicissitudes, as prazerosas e as penosas também. Aqui está o fim da forte idéia de “pecado” instalada em nós.
   Momentos de grandes apegos em nossas vidas, assim como momentos de intenso fulgor sensual trazem em si telegrafados a informação subliminar que tudo isso seria também passageiro em nós, e não nós passageiros destes momentos, há ali apenas informação, e devemos estar preparados para decodificá-la.
   Nos momentos mais tórridos de nossas vidas adentram um grande fluxo de informação exterior à ilusoriedade das coisas aos quais devemos estar atentos se nossa vontade é a de justamente romper o véu das ilusões da realidade. São nesses perigos que se acham a segurança da uma gnose amiga.
   O mundo, suas coisas, estão aqui, dentro de mim, lutando por espaço em minha tela de conscientização momentânea, querendo existir, pois só existe enquanto dou espaço para ele existir. Isso revela um segundo ponto muito importante, o de que algo da ilusoriedade do mundo se instalou muito fundo dentro de nós, e a isso damos o nome de “ego”.
   Esse agente invasor é uma função paradoxal junto à nossa consciência, e talvez nossa própria consciência como tal seja uma “entidade” criada a partir da função do ego em sua relação para conosco e com a ilusão e seu continuum temporal e “histórico”.
   Crer, como ensinam certas religiões, que o ego subsiste a morte é uma vitória da ilusão em seu esforço de penetrar para fora daquele seu limite de ações que a morte biológica demarca. Seria uma boa tarefa inicial para o “aprendiz de feiticeiro” aqui entender profundamente as falácias do ego, em todos os seus âmbitos e buscar uma arqueologia psicológica que desmascare definitivamente tal meta-ilusão. Não devemos confundir características com identidade. Essa é de posse com aquilo que no exterior nos acode, a outra, uma ilusão com o interior que nos ilude. Esta não condiz com “quem marcou nossa testa”, individualizando-nos.
    Tal tarefa de desmascarar o ego também já está bastante avançada nos círculos científicos que lidam com essas pesquisas, a psicologia tem seus refúgios de sanidade para esclarecer isso, assim como o budismo, a ioga, o taoísmo e alguns saberes mitológicos também. Vá atrás!
   Aqui nessa reflexão basta dizer que o ego é um fator profundamente fisiológico e suas atividades de sabotagem são facilmente desmascaradas por mentes corajosas e desapegadas, e refletir sobre uma dita evolução material do mundo é um bom exercício de criticismo ao ego e suas “obras”.
   O mundo está aí, no lugar onde pode estar, nem mais nem menos. As ilusões são incrivelmente tentadoras em todos os seus aspectos. Todo o nexo de confluências que emanam de meu simples ato de acariciar a gatinha que roça minhas pernas enquanto escrevo isso são suficientes para despertar um turbilhão de sentimentos que remetem e relacionam-se ao meu continuum existencial. Os hindus mesmo chamam isso de “Leelah”, que quer dizer “brincadeira”, “jogo”! Devo aprender a usufruir isso e depois descartar...
    Dessa pulsão liberadora muitas vezes surge um fio de tristeza imensa (seria isso espasmos do ego?), mas posso transformar isso em felicidade também, no controle da mente, na coação do ego que quer se impor. E o jogo vai virando ao meu favor, muito lentamente, cheio de reveses, mas vai virando!
   O véu da realidade vai se rasgando.
                                                                      
                                                                                  e.m.t. 
-Fim do Outono de 2011.